Depois da derrota para o Grêmio por 3x2 - placar que praticamente inviabiliza ao Fluminense qualquer sonho de chegar às semifinais da Copa do Brasil - fiquei me perguntando sobre o que move o torcedor ao estádio; o que o traz sempre para o mesmo local e fazer a mesma coisa sempre, desde criança, quando esse vinha às vezes até compulsoriamente pelas mãos dos mais velhos? Mediante a sabotagem que se faz ao torcedor que sai sempre do aconchego do seu lar para ver o futebol in loco, só me resta afirmar que o futebol nos leva às raias da loucura: ou ele é bom demais para deixar de ser visto, ou é um vício que precisa ser tratado como o álcool, o cigarro ou a erva danada.
Vejam o meu caso: sou tricolor desde sempre. Acompanho o meu time desde as minhas primeiras lembranças. A terceira coisa de que me lembro na vida – a primeira coisa foi o nascimento da minha irmã, a segunda foi a minha primeira bola - é de estar colado na frente de um aparelho televisor, no ano de 1985, na casa dos meus padrinhos, assistindo sozinho a um jogo em que o Fluminense perdia para o São Paulo por 2x0, No Morumbi. Muitos podem brincar de psicanalista e dizer que o fato de me lembrar de uma derrota não é uma banal coincidência, que isso é um jogo mental fabricado pelas sinapses mais recentes do meu cérebro obcecado por um tempo, por um Fluminense que eu não vi, e não pelo atavismo remoto do período em que comecei a virar gente, e gente tricolor, sobretudo. Mas, meus caros, eu cresci sabendo que o Fluminense era o Campeão Brasileiro, que era o clube com mais títulos no futebol carioca, entre outros feitos homéricos narrados pelo meu pai. A derrota ali não impingira nada que abalasse o inexorável sentimento de vencedor que já preenchia meu coração. Eu sou testemunha ocular e viva dos últimos suspiros do Fluminense de outrora.
Pois bem, ontem, 29 de Abril, depois de trabalhar o dia inteiro, cheguei em casa apressado. Fiz meus contatos com amigos; resenhei, rascunhei o jogo com eles, pus minha camisa, cumprindo o mesmo ritual de torcedor que me seguiu até hoje e há de se repetir ao longo de uma vida inteira de devoção a um clube de futebol. Ao chegar à estação de trem, perguntei a bilheteira se haveria trem extra voltando do Maracanã após a partida. Ela me respondeu que não sabia com toda a calma de quem já passou a vida inteira respondendo a mesma repetitiva pergunta a torcedores desesperados. “Isso depende da demanda”, disse ela, como quem repete o terço. Quando cheguei à estação de São Cristóvão, um funcionário da Supervia me disse que, devido à demanda, haveria trem extra. Já dentro do Maracanã, minutos antes de começar a partida, um amigo meu que também fora de trem, disse ter feito a mesma pergunta que eu fizera, só que para um funcionário da estação Maracanã, recebendo, assim, a informação de que não haveria composição com destino à Santa Cruz após o término do jogo. Incrível, não? Não vou me alongar sobre o assunto, apesar de querê-lo muito, pois sempre que me deparo com jornalistas idiotas defendendo os jogos às 21:45 me vem à cabeça o problema do transporte, principalmente o do trem, que já me deixou incontáveis vezes na mão nesses anos de Maraca. Ao sair da estação, caminho a passos rápidos sobre a passarela que me deixaria em frente à bilheteria 8, cujo soldo de meia entrada a deixa sempre abarrotada. Como fui o primeiro a ultrapassar as roletas de saída da estação ferroviária, tive a graça de ser abordado por um cambista que me ofereceu um ingresso de arquibancada por R$ 20 – o preço da entrada é de R$ 30. A sensação desagradável de ser sempre abordado por esses infelizes foi maior dessa vez. Isso porque, a não mais que três metros do contraventor, havia um homem da lei: um policial militar a serviço dos cidadãos que iriam presenciar em instantes o calvário tricolor. Mas eu dou um desconto ao nosso Guarda Belo, pois ele parecia tão feliz e descontraído ao seu celular que não haveria mesmo de se importar com um mero cambista trabalhador que labutava à sua frente.
Ao chegar à fila da bilheteria oito, tomo a informação, através de um torcedor que estava à minha frente, que as bilheterias próximas a entrada do Bellini também estavam vendendo meias entradas. Como tenho direito a tal benefício, por ser professor da rede pública, para lá fui. Até aí o morreu o Neves. Só que a venda de meia entrada no Maracanã tem vida própria. Quase sempre ela acontece na bilheteria oito, mas há dias que ela ocorre também nos guichês da bilheteria cinco; já em outras ocasiões – ontem, por exemplo -, acontece em todas as bilheterias. Tal modalidade de venda não só tem vida própria como parece detestar o torcedor, já que o aviso prévio acerca das vendas nunca é feito.
Ao subir a pequena rampa lateral que dá acesso às catracas era chegada hora da revista. Aliás, revista, só se for a que eu levava na mão. A multidão passava pelo ralo cordão de policiais que ordenavam aos torcedores que levantassem a camisa, somente. Se eu estivesse portando uma arma de fogo na parte de trás da calça, entraria com ela no recinto placidamente.
Enfim, no Maracanã – não antes de acertar milagrosamente a minha carona de volta com meus amigos que foram ao jogo em seus automóveis, dando de ombros para os conselhos do Senhor prefeito do Rio, que, à época das medidas restritivas ao consumo de bebidas alcoólicas no entorno do estádio e do cerceamento do estacionamento na radial Oeste e outras vias próximas, sugeriu aos torcedores que usassem o nosso excelente sistema de transporte público -, era hora de desfrutar do meu Fluminense com novo treinador, Muricy Ramalho, multi campeão no São Paulo.
Pois bem, o Fluminense foi taxativo em relação ao seu futebol: não há elenco em Laranjeiras. Com tudo o que a torcida tem reclamado dos nossos principais jogadores, Fred e Conca, é preciso grifar e da forma mais clara e notável: sem os dois, somos um time sofrível. O primeiro não jogou devido a uma crise súbita de apendicite – e não vai jogar semana que vem, na segunda perna do confronto - e o segundo devido a uma expulsão infantil, na partida anterior contra a Portuguesa.
Depois de ter marcado merecidamente com André Lima, após um grande cruzamento de Mariano, o Fluminense jogou uma boa partida até o Jonas humilhar o nosso bicho preguiça, Leandro Eusébio, e se aproveitar do péssimo posicionamento do Digão. Fomos para o intervalo com uma derrota de 2x1 e um jogador a mais.
Nem assim o Fluminense conseguiu jogar uma partida aceitável. Quando o Diguinho é o único jogador com clarividência para passar a bola e virar o jogo – coisa que um time de escolinha faz quando tem uma peça a mais em campo – é sinal que as coisas vão mesmo mal. Não pelo Diguinho em si, mas pela posição que ele ocupa no meio campo. Não é ele que tem de ser responsável pela organização do time, por concatenar as jogadas. Aliás, o Diguinho é uma das poucas coisas das quais não se podem criticar no Fluminense. O mundo dá mais voltas que um carro da Nascar.
Levamos mais um como quem deixa um ladrão roubar uma velhinha. Ridículo! Por que o Ewerthon não deu pelo menos uma ombrada que fosse no Douglas? Para o final da partida entrou Equi Gonzalez, que mesmo sem ritmo, fez o gol que ainda nos deixa vivos.
Não foi por essa derrota exclusivamente que o Fluminense vem trilhando um caminho paralelo ao de sua verdadeira história. Desse caminho equivocado e traiçoeiro ainda se pode observar o verdadeiro Fluminense, logo ali, triunfando sobre os outros. Os velhos erros se repetem há décadas, frutos de um modelo administrativo que seria corretamente aplicável a uma confraria ou a sociedade dos idosos praticantes de dominó de Bangu, mas não ao Fluminense.
E, no final das contas, eu me pego pensando no mesmo em que estão muitos tricolores de arquibancada com eu, seguramente. Tudo parece conspirar para que eu fique em casa na próxima batalha que meu time vai travar: o preço dos ingressos, o translado, o time, as trocas sucessivas de comando, o nosso ébrio presidente, as filas colossais, os cambistas, a polícia, a nossa torcida encharcada de facções com procedimentos e interesses diferentes, o prefeito... Não faltam opções nesse cardápio infeliz.
Só mesmo aquele garotinho sentado no chão da casa da minha madrinha há quase 25 anos pra me por nos trilhos – não nos da famigerada supervia, e sim nos da minha própria vida – a cada final de semana. O Fluminense sempre será, na minha existência, o reflexo nítido e táctil do que viram aqueles olhos infantis no alvorecer dessa paixão musculosa.
Só me resta dizer, então, “Até semana que vem, Fluminense”, apesar de tudo.
Vitor Gouveia