sexta-feira, 30 de abril de 2010

Até semana que vem, Fluminense



Depois da derrota para o Grêmio por 3x2 - placar que praticamente inviabiliza ao Fluminense qualquer sonho de chegar às semifinais da Copa do Brasil - fiquei me perguntando sobre o que move o torcedor ao estádio; o que o traz sempre para o mesmo local e fazer a mesma coisa sempre, desde criança, quando esse vinha às vezes até compulsoriamente pelas mãos dos mais velhos? Mediante a sabotagem que se faz ao torcedor que sai sempre do aconchego do seu lar para ver o futebol in loco, só me resta afirmar que o futebol nos leva às raias da loucura: ou ele é bom demais para deixar de ser visto, ou é um vício que precisa ser tratado como o álcool, o cigarro ou a erva danada.

Vejam o meu caso: sou tricolor desde sempre. Acompanho o meu time desde as minhas primeiras lembranças. A terceira coisa de que me lembro na vida – a primeira coisa foi o nascimento da minha irmã, a segunda foi a minha primeira bola - é de estar colado na frente de um aparelho televisor, no ano de 1985, na casa dos meus padrinhos, assistindo sozinho a um jogo em que o Fluminense perdia para o São Paulo por 2x0, No Morumbi. Muitos podem brincar de psicanalista e dizer que o fato de me lembrar de uma derrota não é uma banal coincidência, que isso é um jogo mental fabricado pelas sinapses mais recentes do meu cérebro obcecado por um tempo, por um Fluminense que eu não vi, e não pelo atavismo remoto do período em que comecei a virar gente, e gente tricolor, sobretudo. Mas, meus caros, eu cresci sabendo que o Fluminense era o Campeão Brasileiro, que era o clube com mais títulos no futebol carioca, entre outros feitos homéricos narrados pelo meu pai. A derrota ali não impingira nada que abalasse o inexorável sentimento de vencedor que já preenchia meu coração. Eu sou testemunha ocular e viva dos últimos suspiros do Fluminense de outrora.

Pois bem, ontem, 29 de Abril, depois de trabalhar o dia inteiro, cheguei em casa apressado. Fiz meus contatos com amigos; resenhei, rascunhei o jogo com eles, pus minha camisa, cumprindo o mesmo ritual de torcedor que me seguiu até hoje e há de se repetir ao longo de uma vida inteira de devoção a um clube de futebol. Ao chegar à estação de trem, perguntei a bilheteira se haveria trem extra voltando do Maracanã após a partida. Ela me respondeu que não sabia com toda a calma de quem já passou a vida inteira respondendo a mesma repetitiva pergunta a torcedores desesperados. “Isso depende da demanda”, disse ela, como quem repete o terço. Quando cheguei à estação de São Cristóvão, um funcionário da Supervia me disse que, devido à demanda, haveria trem extra. Já dentro do Maracanã, minutos antes de começar a partida, um amigo meu que também fora de trem, disse ter feito a mesma pergunta que eu fizera, só que para um funcionário da estação Maracanã, recebendo, assim, a informação de que não haveria composição com destino à Santa Cruz após o término do jogo. Incrível, não? Não vou me alongar sobre o assunto, apesar de querê-lo muito, pois sempre que me deparo com jornalistas idiotas defendendo os jogos às 21:45 me vem à cabeça o problema do transporte, principalmente o do trem, que já me deixou incontáveis vezes na mão nesses anos de Maraca. Ao sair da estação, caminho a passos rápidos sobre a passarela que me deixaria em frente à bilheteria 8, cujo soldo de meia entrada a deixa sempre abarrotada. Como fui o primeiro a ultrapassar as roletas de saída da estação ferroviária, tive a graça de ser abordado por um cambista que me ofereceu um ingresso de arquibancada por R$ 20 – o preço da entrada é de R$ 30. A sensação desagradável de ser sempre abordado por esses infelizes foi maior dessa vez. Isso porque, a não mais que três metros do contraventor, havia um homem da lei: um policial militar a serviço dos cidadãos que iriam presenciar em instantes o calvário tricolor. Mas eu dou um desconto ao nosso Guarda Belo, pois ele parecia tão feliz e descontraído ao seu celular que não haveria mesmo de se importar com um mero cambista trabalhador que labutava à sua frente.

Ao chegar à fila da bilheteria oito, tomo a informação, através de um torcedor que estava à minha frente, que as bilheterias próximas a entrada do Bellini também estavam vendendo meias entradas. Como tenho direito a tal benefício, por ser professor da rede pública, para lá fui. Até aí o morreu o Neves. Só que a venda de meia entrada no Maracanã tem vida própria. Quase sempre ela acontece na bilheteria oito, mas há dias que ela ocorre também nos guichês da bilheteria cinco; já em outras ocasiões – ontem, por exemplo -, acontece em todas as bilheterias. Tal modalidade de venda não só tem vida própria como parece detestar o torcedor, já que o aviso prévio acerca das vendas nunca é feito.

Ao subir a pequena rampa lateral que dá acesso às catracas era chegada hora da revista. Aliás, revista, só se for a que eu levava na mão. A multidão passava pelo ralo cordão de policiais que ordenavam aos torcedores que levantassem a camisa, somente. Se eu estivesse portando uma arma de fogo na parte de trás da calça, entraria com ela no recinto placidamente.
Enfim, no Maracanã – não antes de acertar milagrosamente a minha carona de volta com meus amigos que foram ao jogo em seus automóveis, dando de ombros para os conselhos do Senhor prefeito do Rio, que, à época das medidas restritivas ao consumo de bebidas alcoólicas no entorno do estádio e do cerceamento do estacionamento na radial Oeste e outras vias próximas, sugeriu aos torcedores que usassem o nosso excelente sistema de transporte público -, era hora de desfrutar do meu Fluminense com novo treinador, Muricy Ramalho, multi campeão no São Paulo.

Pois bem, o Fluminense foi taxativo em relação ao seu futebol: não há elenco em Laranjeiras. Com tudo o que a torcida tem reclamado dos nossos principais jogadores, Fred e Conca, é preciso grifar e da forma mais clara e notável: sem os dois, somos um time sofrível. O primeiro não jogou devido a uma crise súbita de apendicite – e não vai jogar semana que vem, na segunda perna do confronto - e o segundo devido a uma expulsão infantil, na partida anterior contra a Portuguesa.
Depois de ter marcado merecidamente com André Lima, após um grande cruzamento de Mariano, o Fluminense jogou uma boa partida até o Jonas humilhar o nosso bicho preguiça, Leandro Eusébio, e se aproveitar do péssimo posicionamento do Digão. Fomos para o intervalo com uma derrota de 2x1 e um jogador a mais.

Nem assim o Fluminense conseguiu jogar uma partida aceitável. Quando o Diguinho é o único jogador com clarividência para passar a bola e virar o jogo – coisa que um time de escolinha faz quando tem uma peça a mais em campo – é sinal que as coisas vão mesmo mal. Não pelo Diguinho em si, mas pela posição que ele ocupa no meio campo. Não é ele que tem de ser responsável pela organização do time, por concatenar as jogadas. Aliás, o Diguinho é uma das poucas coisas das quais não se podem criticar no Fluminense. O mundo dá mais voltas que um carro da Nascar.

Levamos mais um como quem deixa um ladrão roubar uma velhinha. Ridículo! Por que o Ewerthon não deu pelo menos uma ombrada que fosse no Douglas? Para o final da partida entrou Equi Gonzalez, que mesmo sem ritmo, fez o gol que ainda nos deixa vivos.

Não foi por essa derrota exclusivamente que o Fluminense vem trilhando um caminho paralelo ao de sua verdadeira história. Desse caminho equivocado e traiçoeiro ainda se pode observar o verdadeiro Fluminense, logo ali, triunfando sobre os outros. Os velhos erros se repetem há décadas, frutos de um modelo administrativo que seria corretamente aplicável a uma confraria ou a sociedade dos idosos praticantes de dominó de Bangu, mas não ao Fluminense.

E, no final das contas, eu me pego pensando no mesmo em que estão muitos tricolores de arquibancada com eu, seguramente. Tudo parece conspirar para que eu fique em casa na próxima batalha que meu time vai travar: o preço dos ingressos, o translado, o time, as trocas sucessivas de comando, o nosso ébrio presidente, as filas colossais, os cambistas, a polícia, a nossa torcida encharcada de facções com procedimentos e interesses diferentes, o prefeito... Não faltam opções nesse cardápio infeliz.

Só mesmo aquele garotinho sentado no chão da casa da minha madrinha há quase 25 anos pra me por nos trilhos – não nos da famigerada supervia, e sim nos da minha própria vida – a cada final de semana. O Fluminense sempre será, na minha existência, o reflexo nítido e táctil do que viram aqueles olhos infantis no alvorecer dessa paixão musculosa.
Só me resta dizer, então, “Até semana que vem, Fluminense”, apesar de tudo.


Vitor Gouveia

terça-feira, 27 de abril de 2010

Milito vs. Milito

Na quarta-feira próxima, teremos diante de nós o segundo capítulo da final antecipada da Liga dos Campeões de Europa – assim espero. É o segundo jogo semifinal entre o melhor time de futebol do mundo, o Barcelona, e o time de mais élan e obediência tática entre todos, a Internazionale. O primeiro joga pela história: consagrará a idéia verossímil de unir arte com resultado, se descontar o placar adverso e deveras surpreendente de 3 x 1 sofrido em Milão. A segunda joga pela vida de várias gerações de torcedores frustradas em ver o rival, Milan, ganhar sistematicamente o maior torneio de futebol disputado pelos clubes europeus, nos últimos vinte anos. Ademais, em meio a profusão de estórias que permearão o enredo desse cotejo que põe à prova a excelência de escolas de futebol tão diferentes – poucas vezes o futebol arte foi tão arte quanto nesse Barcelona, assim como o Catenaccio italiano, há muito tempo, não se vê representado de forma tão digna como pela Inter do treinador Mourinho -, existirá uma que, desde que foi deflagrada com a suspensão automática por acúmulo de cartões do zagueiro catalão Puyol, despertou-me uma profunda compaixão pelos que a escreverão: sofro pelos irmãos argentinos Gabriel e Diego Milito.

Não havia nem a necessidade do comentário prontamente feito pelo PVC, à hora da punição ao capitão do Barça: “Será a primeira vez na história da champions league que um irmão enfrentará o outro em fase tão aguda”. Tanto não havia premência que posso até estar enganado sobre a fase – em última instância, até a frase pode ter sido um pouco diferente. Não importa. O fato é que Gabriel Milito será um dos beques do Barcelona, semana que vem. Danei-me a matutar e logo concluí que nunca será igual jogar contra um irmão como se faz sempre contra qualquer adversário sem laço sanguíneo tão forte. Impossível foi não pensar que a partida pode trazer o que há de mais enterrado na alma tanto de um quanto do outro. Se a relação de irmãos está quase sempre bancando o equilibrista, o que será dela com a lufada ciclônica que virá junto com o jogo de futebol do ano?
Que a família dos outrora jovens Milito era boleira, parece não nos restar gota de dúvida. Só de um ambiente entulhado por discussões clubísticas, peladas e idas ao estádio poderiam frutificar dois jogadores profissionais de certa eminência, e aí pode-se destacar Diego Milito. Pois, então, é justamente nesse ponto que a compaixão em mim, pelos dois, recrudesce. Desde os tempos de Racing Club, Milito – Diego - marcava tentos, despertava a simpatia dos torcedores e o interesse carnívoro da mídia pelos grandes atacantes, os protagonistas do espetáculo. Diego Milito, desde novo, já entrara no rol dos que vendem jornal: os que fazem gols. Pelos idos de 2001, lembro bem do Milito artilheiro, levando a sua sofrida Academia ao título esperado e mitificado por mais de três décadas. Já Gabriel, anunciara, desde as suas primeiras partidas o que seria para sempre: um zagueiro de mediano para bom. Não havia nada nele que pudesse alçá-lo, um dia, ao patamar do irmão.

Nas minhas memórias de aspirante a jogador de futebol, lembro-me de vários casos de irmãos futebolistas, principalmente nas experiências que tive de jogador amador; e o que me deixa aflito por esses dois irmãos que nunca conheci para além da impessoalidade da tela de televisão é a guerra velada que os pais impunham, impetravam aos seus queridos descendentes. Mesmo na minha falta de sabedoria juvenil, achava os pais de atletas moços muito irritantes. A forma como lidavam com os treinadores, com os outros pais, com os pais de atletas de times adversários, como cobravam exasperadamente seus filhos me consternava. Em contrapartida, havia meu pai, que me consultava ao menor sinal de dissabor que eu, volta e meia, demonstrava, em decorrência daquela rotina de treinos e pais mal educados, deixando-me livre pra decidir sobre minhas prioridades. Meu velho pai era uma exceção.


Mas, fora de ordem mesmo era encontrar um pai de irmãos jogadores como o meu. Eles sempre tinham um preferido, que era o que melhor jogava, invariavelmente. A sua predileção contagiava toda a família e vizinhos que iam ver aos jogos nos Domingos pela manhã. Se um dos filhos apresentasse evolução e ultrapassasse em talento o irmão já consagrado na predileção da família, a bajulação mudava do primogênito para o caçula num piscar de olhos, fomentando o recalque e mais outros sentimentos inerentes a irmãos criados numa atmosfera de competição entre si. Se um dos irmãos inventava uma nova jogada, um novo drible, o patinho feio da família tentava copiá-lo, em busca de gols, passes e carinho. Era triste ver que o estorvo da família logo se tornava um menino sério, tenso, frustrado e arredio. E, às vésperas do embate entre dois dos gigantes escretes do futebol europeu, posta está a questão: quem teria sido Diego, quem teria sido Gabriel? A quem foi devotado o amor exagerado e envaidecedor? A quem foram relegadas as migalhas de pai e mãe?

Eu cresci em meio a essas agruras familiares. E, logo, vejo um pouco dessas experiências do passado refletidas nos irmãos argentinos. Não duvido: pelo estilo de jogo aguerrido dos dois e pelo sucesso de suas carreiras, a última coisa pela qual passa por suas cabeças nesse momento é que vão ter de se enfrentar ( o que torna pior o embate é que eles jogam em posições onde o fracasso de um vai ser o sucesso do outro. Eles irão duelar diretamente, vão ter vários “um-contra-um” durante os noventa minutos, serão atacante contra zagueiro, irmão tentando subjugar o outro ). Contudo, quando a bola rolar, tenho certeza que aqueles sentimentos da infância, aquela falta de tato dos pais, o coágulo parcamente estancado vai sangrar. Isso, claro, se o Milito pai for como aqueles patriarcas descerebrados dos meus tempos em que sonhava em ser jogador de futebol. Como nunca presenciei – pelo menos não me lembro, exceto por um pai, chamado Sinésio - algo que não fosse essa destrutiva forma de deseducar irmãos jogadores, não tenho ilusões quanto às cartas que estarão à mesa na partida do Campo Nou: inveja, competição e tragédia.

Que ninguém tenha que sentir o peso nos ombros dos irmãos – a não ser os próprios -, como se fossem seus, os telespectadores de um jogo tão marcante e importante para esse final de década no futebol - é; porque, para mim, vai ser difícil: são demasiada atávicas as lembranças. E que os irmãos Milito possam jogar contra um adversário de uma camisa diferente, somente, apesar de saber no fundo da minha alma que isso é bastante improvável. Eu sei que seus fantasmas sairão de suas tumbas quando, face a face, um contra o outro, revolverão os irmãos a poeira há tanto embaixo do tapete a cada jogada, falta, a cada segundo.

Vitor Gouveia