domingo, 2 de maio de 2010

Eu não, Professor!


Nesse Domingo eu fiz uma verdadeira viagem no tempo. Aquilo que jazia a sete palmos nos escombros do futebol arte irrompeu pela tela da minha televisão. Se o futebol era realmente aquilo que cresci ouvindo do meu pai, acho que ele veio dar um olá para uma geração acostumada a se envolver com tanta besteira que parece estar acoplada a santa bola, mas não está, definitivamente. O futebol é muito mais do que nos acostumamos a amar, sobretudo os mais jovens como eu.

Assisti a uma grande final de campeonato paulista. O deslumbrante Santos cumpriu a profecia dos fãs de futebol e da imprensa: sagrou-se o time da Vila Belmiro Campeão Estadual. O jogo foi fantástico. O valente Santo André fez um gol relâmpago, como fizera na semana anterior. Talvez por isso o clima de desespero não se instaurou nem na torcida, tampouco nos jogadores. Não dá nem para por na conta de uma suposta soberba santista tal indiferença à derrota parcial. Se no jogo anterior foi possível virar o placar, por que não nesse em curso ? O Santos igualou o placar depois de uma grande jogada do Robinho, num toque de letra genial. Neymar recebeu o doce passe e instaurou a esbórnia futebolística na área do Santo André. Driblou, derrubou um desesperado zagueiro. Golaço do menino! Ele é um grande jogador de fato, uma joia rara. Tomara que não façam um reality show com um garoto que foi mimado a vida inteira, que foi sempre o melhor entre os melhores e, que por isso, é um boquirroto em potencial. Tenho certeza que a língua frouxa há de se contentar em dizer somente o que for previamente analisado, quando a sabedoria atracar naquela cabeça vazia de adolescente.

O time do ABC seguiu fazendo o que fez em toda a campanha: jogou para o ataque. E jogou bem. Pôs-se na dianteira, novamente. Mas o personagem do jogo deu o ar da graça. Paulo Henrique Ganso num toque de letra sobrenatural - algum fantasma de algum torcedor preso ao mundo dos homens por não conseguir deixar o futebol deve ter lhe assoprado o rumo do passe - pôs Neymar na cara do gol, e o garoto não costuma perdoar: 2x2.

O jogo descambou para a batalha campal. O time do Santo André armou um desproprocional fusuê devido a uma das incontáveis farsas de Neymar. Nessa cavada de ator falido engendrou-se uma história que há de ecoar por muitas gerações, anabolizando o mito, construindo o relato indestrutível que contará sobre um garoto de 20 anos que jogou como um Rei astuto e experiente.

Após o quiprocó que levou ao vestiário um jogador de cada time, houve mais uma expulsão. O experiente Marquinhos deu um carrinho tão sanguinolento quanto estúpido no avante andreense e tomou o caminho de casa. Para rechear o drama - como se já não houvesse motivo para o roer de unhas do público - o azarão chegou à metade do cotejo com a vantegem de 3x2. Mais um gol e o título iria para o improvável Santo André.

O sengundo tempo foi morno. Mas foi morno porque assim quis o catedrático meia santista. Ele fez o que quis: passou a bola para o lado, virou o jogo, chamou as faltas - conseguiu todas elas -, deu passes verticais, conquistou suados laterais. O ritmo do jogo estava ao bel prazer do Ganso, o qual o apelido não posso conceber origem diferente que não seja o fato desse monstro da bola não olhar para a mesma, nunca, como tal ave jamais olha suas próprias patas, impetrando seu olhar galante para frente. Ela, a bola, é escrava do menino Rei. Ele a detém ao ponto de não se preocupar que ela lhe deseje escapar das suas travas. Ganso sabe que a redonda o adora, que ela não fugiria do seu domínio sem motivo aparente.

À essa altura eu já tinha esquecido as ridículas dancinhas, as chuteiras roxas e o absurdo caso em que os decantados meninos da vila se recusaram a prestar solidariedade a crianças excepcionais sob tutela de uma entidade espírita: estava torcendo, àquele instante do segundo tempo, pelo time do Paulo Henrique, que poderia ser qualquer um. Não faria a menor diferença fosse um outro time.

De repente, num devaneio de professor pardal, o terinador alvinegro, Dorival Júnior, resolve sacar o Neymar para lançar mão de uma figura já bastante conhecida pelos tricolores de todo Brasil. Um volante sem inspiração qualquer e que ultimamente voltou às manchetes por ter servido de guru religioso para os garotos da baixada santista no caso das crianças do centro espírita. O nome do medíocre jogador é Roberto Brum. Ele mesmo, meus caros companheiros. Não bastasse sua tétrica inoperância nas quatro linhas, agora o nosso velho amigo profere a intolerância religiosa nas concentrações da vida. E o nosso ex-jogador deixou o Santos com sete jogadores na linha, após um carrinho que deve estar na conta de Deus para a hora do juízo final desse profeta e jogador de araque. Mas foi bom; foi divino, arrisco-me a dizer. Um homem de Deus fez valer o ditado por Séculos reproduzido em nosso país: "Deus escreve certo por linhas tortas".

A partir daí, o jogo virou um solo do Ganso, ao invés da previsível pressão que viria do lado inimigo. Não há jogador, por mais burocrático e invisível que seja, que não se torne um titã numa final de campeonato contra o favorito reduzido a sete espartanos em campo. Entretanto, havia o jogador que só olha para cima, infante, em campo. Ele continuou fazendo o quis da partida; só que nesse momento, cada vez mais ilhado no ataque, cada vez mais encarcerado pelos marcadores.

Só que nesse voo solo do craque, o eminente professor pardal quis entrar. O treinador Dorival Júnior, nitidamente fora de si, resolve retirar Paulo Henrique Ganso para colocar um João qualquer, a fim de morrer abraçado com resultado que lhe daria o título mais importante de sua promissora carreira de técnico de futebol. E foi justamente na loucura a pulsar dos olhos do apavorado treinador que reluziu, em reflexo, o craque. O menino de vinte anos vira convicto para o chefe e diz "Eu não, professor. Eu vou ficar. Tem que sair o André", falando com a boca, olhos e braços, para ver se trazia o doido comandante de volta para a tensa realidade. Ou foi isso que subitamente aconteceu, ou o chefe da nau santista resignou-se a aceitar o desafio explícito à hierarquia do grupo que comandou com reconhecido sucesso. Assim como o nosso craque pediu, o seu treinador obedeceu. Saiu o André, ficou o Paulo Henrique.

Paulo Henrique Ganso ficou, jogou, ou melhor, desfilou como um cisne. Ganso já não é alcunha que lhe caiba. O Santos foi campeão com toda justiça.

E eu logo me vi diante de um craque que joga como os do passado, no seu próprio tempo. Assim como Nelson Rodrigues escreveu sobre Didi, eu me sinto à vontade para fazer uso da paráfrase: "Ganso imprime ao jogo o peso da lesma". E o que é mais delicioso: são os outros que parecem sempre irremediavelmente presos à gosma da lesma com a bola nos pés, enquanto ela mesma - a lesma de chuteiras - está nos gramados dando espetáculo, sempre livre, sempre desmarcada.

E não bastase o jogador espetacular fora do seu tempo - o passado -, ainda há o homem que se impõe ao burocrata da linha lateral, como fizeram Gérson, Pelé, Carlos Alberto, Didi e tantos outros habitantes do panteão do futebol deste país.

E que a conservadora "Família Dunga" tenha nos seus quadros o artista, a lesma, o cisne. Deixar esse super jogador de fora de um mundial não será passível de perdão, nem pedindo a intervenção do insólito Pastor Roberto Brum.

Vitor Gouveia

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