terça-feira, 4 de maio de 2010

Muita casca para pouco recheio


Acabo de ouvir direto das caixas de som do meu aparelho televisor que haverá uma mega mobilização da “torcida” corintiana para prestar auxílio anímico ao time do Parque São Jorge, pela segunda e derradeira partida das oitavas de final da Copa Libertadores, na quarta-feira próxima. Serão mais de 40.000 apitos para fazer um barulho que possa levantar o astral dos jogadores, criando uma atmosfera hostil para o nosso tradicional adversário, o Flamengo.

O leitor pode achar estranho o fato de eu ter ouvido a notícia sem registro visual, que é, em última instância, o fator de atração que consagrou o aparelho televisor como um amigo íntimo de cada pessoa que tenha até 50 anos de idade. Não que eu não goste da imagem da minha TV ou do mosaico colorido dos programas de esporte vespertinos – eles devem ser assim engraçadinhos, animados e coleidoscópicos devido ao fato das pessoas estarem abarrotados de comida em processo de digestão, entre um turno e outro do trabalho, loucas para uma sonequinha a qual só poderão desfrutar no sofá de casa, depois do pôr-do-sol -, mas não consigo ouvir o que não faria a menor falta na minha vida – seja pela pauta risível, pelos textos escritos nas coxas ou pela banalização do fato esportivo – em estado de prontidão, defronte à TV. Por isso, ligo a televisão e sigo dando continuidade aos meus afazeres cotidianos.

Não vi a face do repórter do Globo Esporte que soltou a notícia do apitaço, mas não se fez necessário. Pelas inflexões dadas ao texto, já deu para diagnosticar aquele clima de frango e farofa tão característico do programa que tem seu protótipo cada vez mais difundido na imprensa esportiva . Paralelamente à disseminação de subterfúgios retóricos e tecnológicos dos nossos periodistas existe um avanço geométrico de novas mídias e a abertura de novos espaços de exposição para a literatura esportiva – esse blog é prova irrefutável disso. Talvez a concorrência com os anônimos e amadores produtores de informação tenha acirrado uma prática comum da imprensa desde a época em que o tenro jornal impresso mexeu com as estruturas da sociedade ocidental: são nitidamente perceptíveis a produção de factóides e a sua obsessiva e massificada repetição. O caso do apitaço é só mais um entre tantos. Quem já não se acostumou a ouvir corriqueiramente expressões como “país do futebol”, “Flamengo hexacampeão brasileiro”, “os argentinos odeiam amar os brasileiros”, “a torcida do São Paulo é fanática pela Libertadores”… Há chavões para todos os gostos.

Ao abrir os maiores portais esportivos na internet, tenho a sensação de que o dia não tem mais vinte a quatro horas. São várias rotações no tempo de uma só. Num espaço de não mais de oito horas, as páginas, sejam elas as iniciais – correspondentes à primeira página dos jornais impressos – ou as relativas a um time ou a esporte qualquer que não seja o futebol – o miolo do jornal -, já estão completamente modificadas pela avalanche de novas imagens e informações. Os textos e fotos de horas antes somem feito um ladrão na escuridão. Meus amigos, ou a minha vida é uma chatice de novela mexicana ou o volume de novos textos é desproporcional. Em oito horas, se não houver um cataclismo no mundo, a vida de qualquer pessoa ou grupo de trabalho não muda assim feito um camaleão em temporada de reprodução. É muita casca para pouco recheio.

Pois bem, o jornalista nidifica no seu próprio engodo, no molde já enraizado por anos de veiculação. É como uma linha de montagem: pega-se o corpo da informação – já batida, repetida – e coloca-se o que é necessário para dar-lhe caráter autoral, mesmo que seja difícil imaginar que alguém tenha orgulho em assinar baboseiras tão rotundas. Mas como a informação é tão frívola e descartável, basta apertar o “atualizar” em qualquer computador de redação da vida para soterrar um texto sofrível por estilo, ou por enredo.

Volto ao caso do apitaço por ser deveras didático: o repórter reproduziu o fato que já estamos cansados de ver quando há alguma peleja importante a ser disputada por um clube brasileiro. Sempre há alguém ou grupo tresloucado que toma dianteira e resolve entupir a torcida de apitos – quem não se lembra do inferno da Libertadores de 2008 disputada pelo Fluminense, ao som de milhares de torcedores de final num assoprar infernal?. Comprados os apitos, chega a hora do sagaz repórter, que reproduz com um sorriso branco retinto a informação de que a torcida em questão vai utilizar milhares de apitos para “fazer a festa” e empurrar o seu time de coração para mais um triunfo. Hora, vejam: é esse mesmo tipo de repórter que volta da Argentina, quando vai à trabalho, relatando o clima místico das torcidas de lá. Os relatos sempre repetem as velhas máximas de que os argentinos cantam o tempo todo e empurram seus times com a força das canções de exaltação ao clube. Já viram algum repórter ou cronista que tenha visto uma torcida argentina in loco contar da beleza e da intimidação causada por milhares de apitos? Definitivamente, não.

Mas, se o tempo do noticiário urge feito uma morte anunciada, se existem dezenas de outros programas e materiais sendo concomitantemente produzidos no segmento esportivo, se o público vai dar de ombros para o fato de que apitar feito um guarda de trânsito não leva energia extra a jogador nenhum, por que não repetir a mesma mentirinha mais uma vez? Tal informação vai soar sempre tão natural quanto o triste fato de que mais uma vez uma grande torcida do Brasil vai apitar em vez de cantar. Mas, não tem problema, na hora de confeccionar as chamadas que promoverão o jogo das duas maiores torcidas do Brasil nos intervalos comerciais, já vai haver um arquivo santo que vai reproduzir a canção que a torcida do Corinthians não vai conseguir cantar à hora do jogo, seja pelos apitos, seja pelos torcedores de ocasião que têm bala na agulha para pagar pelos ingressos abusivos, substituindo assim aquele povo que vai aos jogos de menor apelo – esses que as emissoras aproveitam para gravar a musiquinha que vai embalar a divulgação da partida durante os dias que antecedem a mesma.

Se a previsibilidade da imprensa se restringisse ao caso dos agastantes apitos, eu me resignaria. O efeito nefasto sobre o futebol seria irrisório. Contudo, a produção de arquétipos via jornalismo já foi mais inspirada e menos danosa. Mas isso foi no tempo em que o dia tinha vinte e quatro horas e a página do jornal só mudava através da aquisição de um outro exemplar, na manhã do dia seguinte.

Vitor Gouveia

Um comentário:

  1. “Flamengo hexacampeão brasileiro” não é um chavão. É tão fato quanto "Vasco tetracampeão brasileiro". Lugar comum é questionar a vitória legítima do rubro-negro (o da Gávea).

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