Luis nasceu num dia quente, numa opressora tarde de verão carioca, quando o médico responsável pelo parto resolveu dar cabo do gritar desenfreado da mãe, que acabou por ter que dar a luz da maneira que não desejava, através de um corte de bisturi. Dizia ela que já que seu filho teria que conviver com a incontornável mão da intervenção da ciência – e da má ciência, como os alimentos industrializados e as redes sociais na internet, assim dizia pretensiosamente a mulher tatuada em um tempo diferente do seu próprio -, que ao menos no primeiro contato com a existência além útero, o menino deveria ser conduzido pela mão da natureza.
Não se sabe ao certo o que as primeiras impressões sobre o mundo externo causam de definitivo à pessoa. Levando em conta que tudo o que nós conhecemos quando recém chegados à vida são aquelas sensações mais primitivas, as que minoramos, desprezamos e subestimamos depois de velhos – os cheiros, dores, a fome e a variação da temperatura -, podemos afirmar que Luis nasceu sob jugo da opressão da estação do Sol. Durante os seus primeiros meses, o menino agonizou, chorou irremediavelmente diante da brasa do sádico tumor amarelo que jamais brilhara tão intensamente quanto naquele ano. Sua mãe que já havia de tê-lo parido sob condições artificiais, agora tinha mais um canhão para o seu arsenal verborrágico diário contra a humanidade e suas excrescências contemporâneas; coisas como o aquecimento global, que naquele momento fazia seu menino cair em prantos irrefreavelmente diante do bafo da fornalha que malogrou o ar daqueles dias.
E se alguém jamais atinou para o quanto o temperamento humano em seu estágio inicial de pavimentação se dobra mediante as reminiscências dos primeiros dias de vida, é bom que se preste atenção, então, ao menino Luis. O menino sentiu o fogo da opressão desde os primeiros instantes: no alvorecer de tudo o que estaria por vir, estavam postos um bisturi, uma luva, uma irascível e resmungona mãe e o sol, um sol jamais sentido como naquele ano. Não havia fome sem calor; não havia sono, riso, choro, fezes, tios, brinquedos sem o calor. Tudo passaria a ser visto e encarado, daqui para frente, através da angústia e da pele untada em suor naquelas semanas de iniciante.
Ninguém, óbvio, pode objetar que, não obstante o fato de uma recém criança não poder fazer nada do que um adulto faz, um bebê é tão sensível quanto as pessoas de idade avançada. O choro estridente de um nenezinho é o que exprime melhor o sofrimento humano, mesmo que seja esse por uma necessidade que virá a ser inequivocamente tola para um adulto, até mesmo para uma criança mais madura ou um adolescente. Se Luis chorava por leite ou por prisão de ventre é porque não sabia falar; se não sabia falar, só podia mesmo sofrer, visto que não sabia como e o quê pedir. E, se os velhos calejados não choram mais por não ter o que querem, é só pelo fato de já terem se acostumado a tantas negativas. Não é o amadurecimento, tampouco o domínio da língua que ergue o muro do silêncio nas relações interpessoais, é o hábito de receber uma quantidade incomensurável de negativas. A cada longitudinal balançar de cabeça, a cada incontinente balbuciar dos lábios, a cada rotundo e convicto não, chora lá na mais instransponível vereda de nossas memórias um bebê.
Luis foi crescendo. Clinicamente, era perfeito. A mãe vivia agradecendo ao seu santo de devoção pela graça dada. Às missas de Domingo ia religiosamente, e sempre à missa das crianças. No meio daquela multidão de mães e avós, contava com certo orgulho da saúde de seu filho, o que soava sempre muito mal aos olhos das outras mães que viviam em consultórios e em salas de fisioterapia com seus pequenos enfermos. Mas se o menino Luis parecia um pequeno touro frente aos coleguinhas, no seu interior jazia uma terrível solidão. A excêntrica mãe, ao contrair o glaucoma materno que distorce a visão que se tem da cria, via naquele menino tímido e solitário um infantezinho, mesmo que para o resto da paróquia estivesse bem claro que se por um lado Luis gozava de força física, por outro o garoto não se relacionava bem com os coleguinhas.
Não se sabe ao certo o que as primeiras impressões sobre o mundo externo causam de definitivo à pessoa. Levando em conta que tudo o que nós conhecemos quando recém chegados à vida são aquelas sensações mais primitivas, as que minoramos, desprezamos e subestimamos depois de velhos – os cheiros, dores, a fome e a variação da temperatura -, podemos afirmar que Luis nasceu sob jugo da opressão da estação do Sol. Durante os seus primeiros meses, o menino agonizou, chorou irremediavelmente diante da brasa do sádico tumor amarelo que jamais brilhara tão intensamente quanto naquele ano. Sua mãe que já havia de tê-lo parido sob condições artificiais, agora tinha mais um canhão para o seu arsenal verborrágico diário contra a humanidade e suas excrescências contemporâneas; coisas como o aquecimento global, que naquele momento fazia seu menino cair em prantos irrefreavelmente diante do bafo da fornalha que malogrou o ar daqueles dias.
E se alguém jamais atinou para o quanto o temperamento humano em seu estágio inicial de pavimentação se dobra mediante as reminiscências dos primeiros dias de vida, é bom que se preste atenção, então, ao menino Luis. O menino sentiu o fogo da opressão desde os primeiros instantes: no alvorecer de tudo o que estaria por vir, estavam postos um bisturi, uma luva, uma irascível e resmungona mãe e o sol, um sol jamais sentido como naquele ano. Não havia fome sem calor; não havia sono, riso, choro, fezes, tios, brinquedos sem o calor. Tudo passaria a ser visto e encarado, daqui para frente, através da angústia e da pele untada em suor naquelas semanas de iniciante.
Ninguém, óbvio, pode objetar que, não obstante o fato de uma recém criança não poder fazer nada do que um adulto faz, um bebê é tão sensível quanto as pessoas de idade avançada. O choro estridente de um nenezinho é o que exprime melhor o sofrimento humano, mesmo que seja esse por uma necessidade que virá a ser inequivocamente tola para um adulto, até mesmo para uma criança mais madura ou um adolescente. Se Luis chorava por leite ou por prisão de ventre é porque não sabia falar; se não sabia falar, só podia mesmo sofrer, visto que não sabia como e o quê pedir. E, se os velhos calejados não choram mais por não ter o que querem, é só pelo fato de já terem se acostumado a tantas negativas. Não é o amadurecimento, tampouco o domínio da língua que ergue o muro do silêncio nas relações interpessoais, é o hábito de receber uma quantidade incomensurável de negativas. A cada longitudinal balançar de cabeça, a cada incontinente balbuciar dos lábios, a cada rotundo e convicto não, chora lá na mais instransponível vereda de nossas memórias um bebê.
Luis foi crescendo. Clinicamente, era perfeito. A mãe vivia agradecendo ao seu santo de devoção pela graça dada. Às missas de Domingo ia religiosamente, e sempre à missa das crianças. No meio daquela multidão de mães e avós, contava com certo orgulho da saúde de seu filho, o que soava sempre muito mal aos olhos das outras mães que viviam em consultórios e em salas de fisioterapia com seus pequenos enfermos. Mas se o menino Luis parecia um pequeno touro frente aos coleguinhas, no seu interior jazia uma terrível solidão. A excêntrica mãe, ao contrair o glaucoma materno que distorce a visão que se tem da cria, via naquele menino tímido e solitário um infantezinho, mesmo que para o resto da paróquia estivesse bem claro que se por um lado Luis gozava de força física, por outro o garoto não se relacionava bem com os coleguinhas.
De fato, Luis era só. Era impressionante a velocidade com que se desvencilhava das brincadeiras criadas pelos amiguinhos. Se havia um pique-esconde, deixava-se pegar, o que despertava a ira dos outros meninos. Tão logo a criançada percebeu que Luis não ligava para os xingamentos e cascudos, e deixavam-no de lado, como se faz com os meninos “café-com-leite”. Se havia uma pequena disputa – pequenas corridas, purrinha, par ou ímpar – não demonstrava qualquer interesse; por vezes era obrigado a compor a bandeirinha, o que sempre terminava mal. Luis apanhava quieto.
Pudera: era a opressão. Nem consigo imaginar o que vai no coração de uma pessoa que só conheceu a opressão, impingida pela vida. Desde o sol daquele verão horroroso, Luis vivia enclausurado pelo suor. Atrás daquela espessa camada de tristeza vivia um outro menino, uma espécie de borboleta em seu casulo, e esse invólucro espesso e vil não tinha como se partir. Era como se houvesse um halterofilista preso numa casa de bonecas que nunca se abria. Esse halterofilista não parava de crescer, enquanto a casa permanecia como deveria estar para sempre: imóvel. E na mesma medida em que o halterofilista e a casa de bonecas iam se tornando cada vez mais anacrônicos, Luis se distanciava das coisas do universo dos meninos. Seu rosto não se movia, não expressava o que sentia; na verdade, depois que aprendeu que o choro não mais lhe servia, foi se tornando incomunicável.
Sua mãe vislumbrava naquela criança introvertida um leão. Quanto mais Luis ficava distinto do que deveria ser um menininho normal, mais a mãe introjetava em sua própria mente as ideias que só poderiam ganhar vida dentro de uma mente num avançado estágio de loucura. Conquanto Luis fosse ainda muito novo – a essa altura tinha acabado de completar seis anos da mais ostensiva solidão – e parecesse muito improvável que seus estranhos gestos resultassem do contato nocivo e latente com o universo paranóico da mãe, era de saltar aos olhos a terrível coincidência: mais a mãe se perdia em devaneios, mais o filho se embrenhava na melancolia do auto relacionamento.
Talvez tudo tivesse ocorrido de outra maneira se o pai não tivesse se tornado ausente. Nos últimos dias daquele calor infernal, daquele verão insuportável, a figura paterna abandonou o navio da vida de Luis. Homem avesso aos conflitos, deixou a mulher no comando da própria vida e num monólogo cada vez mais taciturno acerca de suas agastantes teorias. Na realidade, homem nenhum deixa mulher e filho por não aguentar meia dúzia de bobagens recorrentes, de modo que é difícil saber se a loucura estava encruada na mulher desde sempre ou se aquela cabeça pródiga em digressões patéticas se perdera de vez na solidão de mulher abandonada.
Para Luizinho, as consequências se revelavam de formas sutis, sobretudo nos primeiros anos de sua vida. Quando o garoto já demonstrava para todos que embarcara num mergulho abissal em si mesmo, os comentários das outras mães da paróquia proliferaram feito uma pandemia. Entre as discussões sobre as novelas, as compras, o padre, os maridos, o garoto Luis virava pauta cada vez mais constante nas rodas matutinas de Domingo, sempre após a concorrida missa das crianças.
E numa dessas manhãs de bochorno, tudo transcorria como sempre: as mulheres comentavam o sermão do Padre, as crianças corriam no pátio contíguo à igreja, os homens tratavam de rir e papear em frente ao portão maior da paróquia, algumas senhoras já recolhiam os objetos do altar, enquanto o padre falava à sós com um dos seus secretários. Tudo na mais perfeita ordem, inclusive Luís.
Depois de todo final de missa, o garoto se dirigia ao corredor externo de uma das laterais da igreja, onde ficava o salão de festas. Pouco à frente do salão havia um pequeno canteiro com umas mangueiras bem novas, de tamanho bem modesto ainda. Como a copa dessas árvores era insipiente, o sol as perpassava sem a menor dificuldade, sobretudo naquele verão infernal. Naquele pequeno pedaço de terra crescia, desimpedido, um pequenino gramado, onde Luis ia sempre depois da missa para brincar, se é que pode-se chamar aquilo de uma brincadeira. Luis sentava no ínfimo meio-fio que separava o chão de cimento da terra, donde brotavam as jovens mangueiras. Nesse local, Luís sempre fazia a mesma coisa – antes de ser perturbado pelos colegas egressos de alguma zombaria feita depois do “Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe” do padre -: retirava folha por folha da grama, de modo que todo gramado ficasse como um perfeito campo de golfe. Ao roçar cuidadosamente os pedacinhos daquela espécie de gramínea delicada e fina, trazia cada naco verdinho para bem perto de seus olhos, como se ali se encontrasse a solução de um grande mistério ou mesmo um grande tesouro por muito escondido.
No muro que separava a igreja da praça havia um portão preto bem baixo, mas totalmente encerrado numa placa de metal, que dava para o gramadinho. Luís jamais havia pensado em atravessá-lo, a despeito do barulho feliz que sempre chegava da praça após as missas. Ele estava mesmo é entretido com a sua grama. Mas, nesse dia, o portão estava entreaberto e Luís resolveu, num súbito incomum de curiosidade, ir até a praça.
Quando pôs o pé direito para fora do seu bem cuidado jardim, viu uma bola rolando bem em sua direção. Não houve tempo para pensar, somente para ou se desfazer da bola com um chute ou dominá-la para si. Luís, gostando cada vez mais daquela sensação de curiosidade, resolveu ficar com a esfera em seus pés. Com a sola esquerda, munido incrível precisão, controlou a bola. Ficou um breve momento olhando para baixo tentando entender não se sabe o quê, quando notou a presença de um menino correndo em sua direção. Aos gritos, o menino se aproximava requisitando, pedindo a bola , mas Luis estava sem reação. A última coisa que podia ter mente quando atravessou o portão era de que um menino raivoso viria em seu encontro. Mas por algum motivo, assim como deixava seus colegas de igreja caçoar dele impunemente, Luizinho ficou imóvel. Quando o menino mostrou que iria não bater em Luis e sim tentaria lhe tomar a bola, deu-se o milagre: Luis o driblou com um suave corte para a esquerda. Ao ser driblado, o garoto entrou portão adentro, dando de cara com as mangueiras. Desviando delas, não pôde evitar a queda: seus tronco e pernas aterrissaram no gramado, já os braços e mãos ralaram-se no pavimento para proteger a cabeça.
Luis não viu nada disso porque depois do primeiro corte um outro menino – menor, porém com uma feição de cólera – o atacou. Luis desferiu outro drible. Os garotos que estavam de fora da pelada deram um grito que ecoou feito música nos ouvidos de Luis. A algazarra foi sucedida por um pedido de gol coletivo. A garotada gritava e pulava em êxtase. A sensação que Luís teve foi libertadora e inenarrável. À esquerda do portão de onde saíra para subjugar dois garotos desconhecidos havia uma baliza, um golzinho desses de madeira. Luis disparou com a bola. Esse mesmo objeto que era a fonte de suas humilhações na paróquia, que na escola nunca havia lhe despertado o menor interesse, que era mais uma das tantas coisas que não representavam absolutamente nada para ele dentro de seu ensimesmado parque de diversões particular, de um momento para o outro, num estalar de dedos, tornou-se tudo o que ele mais sempre quisera na vida até então. Os olhos arregalados de Luis apontaram para a baliza e para lá ele foi com a bola em seus pés. Na sua cabeça, a corrida é interminável; a bola parece querer sair dos seus pés como quem foge de um cachorro raivoso. Atrás dele os dois meninos estavam distantes: um ainda tentava acompanhá-lo, o outro chorava em razão das mãos raladas do tombo. No final dessa epopeia, Luis tocou para o fundo da rede feita com sacos de batata que aos montes sobram do fim das feiras de Sábado.
O que ocorreu depois foi uma explosão de alegria: uma dezena de garotos vibrando por um gol insólito, feito por um garoto que jamais tinham visto, que saiu de trás de um portão para deixar dois meninos maiores no chão e fazer o gol mais importante da história do futebol: o gol que libertou o halterofilista da casa de bonecas.
Os meninos maiores levavam Luís no colo e repetiam o que viam fazer seus ídolos, ao levantar os destaques dos times nas comemorações de um título. Aos poucos, aquele rostinho que não mudava nunca, aqueles olhos arregalados, aquela expressão petrificada pela tristeza inefável ...Tudo o que era Luís desmoronou em um regozijo na forma de um tímido sorriso.
Ao voltar para a igreja pelo mesmo portãozinho que o levara minutos antes ao delírio, ouviu sua mãe gritar seu nome logo depois de despedir-se da última carola que ainda restava. Quando ela olhou para trás, viu o filho dobrar correndo a coluna do santo prédio. Quando a viu, saltou nos seus braços. A mãe tremeu de pavor e felicidade ao ver seu filho num estado até agora inédito. Luís gritava. Queria contar as novidades:
“Mãe! Mãe! Fiz um gol...Um g-gol...Um golaço!”, gritou o menino com os dois olhos encravados no olhar da mãe.
Logo a mãe percebeu o milagre. Corou subitamente. Só tinha lembranças do filho se comunicando com ela para pedir o que pedia através do choro, quando ainda era um recém-nascido. Naquela confusão de futebol, tensão e júbilo, a combalida mãe recebeu a boa nova: o tempo da opressão, das tempestades de calor, aquele verão abrasivo havia, enfim, chegado ao final.
“Que bom, filho! – disse a mãe para depois de calar-se um pequeno momento e abraçar mais forte ainda seu Luizinho - ... Como foi o gol?”
“Mãe, eu passei por dois e fiz o gol!”
De alegria, a mãe não soltou Luis de seus abraços, até não aguentar mais de tanto peso e felicidade. De mãos dadas, voltaram para casa em silêncio, andando vagarosamente, debaixo do mesmo sol que trazia, dessa vez, um sedutor presságio, cientes de que o mundo – o calor, o sol, a missa, a bola - mudara completamente a partir daquele dia.
Vitor Gouveia
Fala Vitinho,
ResponderExcluirÉ o Marcello do Fluminense & etc. Te procurei no orkut e não achei. Deletou o perfil? Enfim...foi enviado faz um tempinho, o email com os dados para login lá no blog. Caso ainda esteja interessado em continuar participando, saiba que contamos com você.
Abração
Só agora tive tempo para ler o texto. Obra-prima Vitinho. De emocionar. Já pensou na idéia de escrever um livro?
ResponderExcluirAbraço
ps: vou pedir pro Leandro mandar o login e senha do blog pro teu email. Assim que fizer, entro em contato por aqui.
Email enviado!
ResponderExcluirAbraço
Lindo demais! As descrições das agruras de um recém-nascido são maravilhosas!
ResponderExcluirbeijo, tati
Gostei muito, além de futebol vc entende de crianças, rsrsrs. É preciso reconsiderar a questao do genero no seu conto, no mais está show! E eu li tudo rsrsrs.Ana Maria.
ResponderExcluir