sexta-feira, 7 de maio de 2010

O País dos Peladeiros



Eu sou peladeiro convicto, inveterado. Não há quase nada que me faça perder a oportunidade de bater a sagrada bolinha uma, duas, ou, quiçá, três vezes por semana. Não precisa ser com aquele grupo fechado muito comum entre peladeiros de toda cidade, com direito a hierarquia bem delineada, arrecadação mensal, prestação de contas, confraternizações periódicas, jogos amistosos contra outros quadros amadores. Basta um telefonema fortuito, uma mensagem de texto de um amigo que anda meio distante, um e-mail de um colega de trabalho ou mesmo através desses encontros casuais com conhecidos feitos por tantas e tantas peladas por essa vida, e lá eu, com minha chuteira, estarei.

Mesmo que eu saiba que exista um prazer essencial a qualquer tipo de pelada, que a simples repetição desse ritual, o futebol praticado entre os eternos aspirantes – no sentido de que, mesmo que a sapiência consuma feito vírus o que há de juvenil em nós, sempre nos pegamos sonhando com os mesmos gols que idealizávamos ainda imberbes, meninos -, é deliciosamente revigorante para a alma, sei que uma pelada pode encerrar em si mesma um universo particular, cerrado a sete chaves do mundo externo.

Alguns círculos do futebol amador, no Brasil, definem com surpreendente retidão a paixão – ou a falta dela? - do brasileiro pelo futebol. Todos aqueles chavões cunhados ao longo do Século passado, repetidos sistematicamente pelos diferentes setores da nossa sociedade criaram uma imagem um tanto macunaímica do brasileiro, ser invariavelmente fanático por toda modalidade e manifestação da cultura do futebol. O mundo das peladas é um ótimo parâmetro para rascunhar – porque é impossível precisá-lo – o boleiro típico.

Existem incontáveis realidades contíguas no mundo dinâmico das peladas tupiniquins. Cada peladeiro ocupa seu espaço em uma casta. A grande maioria dos futebolistas por paixão segue satisfeita com o que tem, sem ambição maior, sobretudo os que, desde a infância, resignados, sabiam que a arquibancada ou o periodismo seriam para todo o sempre o mais próximo que chegariam do realismo fantástico do nosso esporte predileto. Esse joga sem traumas maiores, erra um passe e sorri, perde uma partida sem o menor sinal de apego a ela como quem deixa um pirulito caiar da boca. Tal peladeiro joga pelo prazer de estar com os amigos, ou pelo milagre que vez por outra acontece de fazer uma jogada de antologia, em meio a tantos outros caneleiros que compõem o cenário e o enredo desses opacos jogos periódicos. Driblar um Zé Ninguém tem um valor imenso; fazer um gol num goleiro de mentira gera uma excitação sem par, mesmo que dure um mero instante. Aquilo pode revolver os sonhos mais petrificados, aqueles que existiam na criança antes dela própria diagnosticar a canelice aguda que a acompanhará até a tumba.

Um outro tipo de peladeiro é aquele que chamarei de médio. Esse detém alguma técnica, ou em casos mais específicos, desfila um talento que pode ser adjetivado como inato. Esse jogador possui, na maioria das vezes, acesso às peladas de bom nível, que contêm mais elementos em comum com o jogo profissional que aquela pelada mal ajambrada do exemplo primeiro. Tal jogador pode advir de origens diferentes. Muitos deles foram jogadores de categorias amadoras, com sucesso variado. Certos indivíduos desse grupo heterogêneo tiveram oportunidades em algum clube de grande porte, ou mesmo chegaram a exercer a profissão de jogador. Mas esses são, em via de regra, exceção em meio à composição desses peladeiros. Contudo, quem se insere nessa categoria já gozou de certa fama, fosse na família, num clube, escolinha ou no seu bairro. Todos eles conviveram em algum momento da vida com os sonhos de jogar profissionalmente, alimentando-os a cada elogio que recebiam. Em determinados indivíduos, o sonho ainda os persegue, seja para alimentar o esforço de seguir tentando, seja para cultivar uma lembrança lúdica, sem maiores desdobramentos psicológicos: o trauma de não ter sido o que se sonhou na idade de sonhar .

O terceiro grupo é o mais interessante e misterioso, sem restar qualquer dúvida para quem se debruçou sobre o assunto. São os atletas amadores, que seguem jogando sem remuneração e preparo adequado; entretanto, praticam o futebol num nível de excelência e competição quase profissionais – alguns desses homens nos despertam compaixão, a cada jogada brilhante, a cada lance que os credenciariam ao disputado e incoerente mercado da bola que, por incontáveis e injustificáveis razões os alijou. Nesse universo reluzente, existe um ritual que se repete em toda cidade quase sempre da mesma forma, independente de classe social ou local onde ocorra. Por esses campos do Rio de Janeiro, é possível encontrar incontáveis campeonatos de pelada. Alguns já são realizados há muitos anos e compõem a paisagem de vários bairros e regiões da nossa urbe. Após a proliferação dos campos de piso sintético, os campeonatos ganharam em qualidade, mas nem a precariedade dos anos anteriores era capaz de afastar esses desportistas dos seus sagrados finais de semana de jogador. O futebol amador brasileiro é uma instituição tão secular quanto o futebol profissional.

Os times são um caso a parte. Aqui na Zona Oeste do Rio aprendemos desde molequeinhos os nomes desses marcos importantes da identidade local: Verdinho, Mocidade, Ás de Ouro são nomes que sempre simbolizarão a Meca dos boleiros que, não por falta de talento, desviaram-se do caminho do esporte profissional. Quando pequenas, as crianças passam os Domingos à beira do campo, observando um jogo atrás do outro, com seus craques exibindo seu talento desperdiçado. Nos intervalos entre um match e outro, são os meninos que entram aos borbotões no relvado numa frenética correria para marcar seus gols naqueles modestos campos que ficam momentaneamente no ocaso efêmero entre uma peleja e outra. Todos eles, os meninos, são magnetizados com as imagens e estórias de artistas do submundo do futebol. Não sei se aquilo tudo - a arte, os espetáculos, as rivalidades - datilografado em minha memória é verdade. A infância e a influência dos mais velhos podem ter distorcido substancialmente o que há de crível nessas minhas românticas lembranças. Mas é inconteste que preciso segurar a tietagem dentro de mim para não deixar transparecer a admiração de décadas que tenho por esses gigantes invisíveis. Eu jogo com eles, converso, debato, mas me parece que nem eles sabem do que despertam naquelas crianças e pré-adolescentes à beirada de onde sonham estar quando houver idade e futebol suficiente. Então, me calo - até a presente crônica estampada nesse blog.

Havia falado anteriormente do ritual. Ele existe e é pitoresco. Para se tornar um atleta amador é necessário ser aceito num grupo restrito, composto por grandes boleiros. Quem desbrava a fronteira dessa sociedade inflexível veio das categorias de base – campeonatos de meninos que acontecem usualmente nos mesmos campos, só que aos Sábados – ou de um outro círculo de boleiros, trazido de um outro lugar da cidade por um amigo. E quanto melhor jogador for esse amigo que o introduz o novato, mais paciência haverá para que esse pratique bom futebol. Quem traz para o plantel alguém que não jogue tão bem para fazer parte de um time de pelada, sofre com gozações que podem ser eternas. Há chance do peladeiro médio entrar ou retornar à esse grupo. Mas este normalmente não o faz, nem mediante pedidos e a sedução do dinheiro – existe remuneração em alguns casos, principalmente se houver um patrocinador entusiasta das peladas. O peladeiro médio, por muitas vezes, é um ser cansado das contusões, brigas, rivalidades e, principalmente, do compromisso sacerdotal necessário aos peladeiros amadores.

Os atletas amadores constituem um mosaico de estilos e personalidades diferentes entre si, mas, mesmo a essas distinções aplicam-se impressionantes semelhanças com o jogador profissional. Assim como podemos ver profissionais da bola mercenários, mascarados, carniceiros, craques, estrelas, sortudos, arredios, resmungões, vencedores, controvertidos, também vislumbramos nitidamente tais características tão intrínsecas ao amador da pelota. Não é raro nos depararmos nesses bairros suburbanos com as mesmas celeumas do futebol praticado na escala máxima, profissionalmente. Sempre há aquele que muda de time às vésperas do início do torneio, seja pela lábia de um outrora adversário, seja pelo aporte financeiro que possa existir – quando não, pode ser cerveja, ou uma chuteira nova, ou mesmo a realização de jogar nas equipes mais tradicionais e vencedoras. Na outra ponta, há o fiel, que jogou uma vida inteira pela mesma camisa, por vezes seguindo já um traço familiar, atravessando uma vida de sobressaltos que um time amador, assim como os quadros profissionais, enfrenta: secas de títulos, problemas financeiros e operacionais, perseguições sistemáticas dos árbitros, conflitos internos ou o fim da carreira dos seus principais jogadores.

E se os jogadores profissionais estão cada vez mais desgarrados das instituições magnas do futebol, os clubes, isso gera um reflexo imediato no comportamento da esmagadora maioria dos boleiros sem fama dessa cidade. É clara e evidente a fascinação que o mundo de pompa e glamour do profissionalismo ainda exerce sobre essas pessoas que estiveram tão perto de realizar a proeza de ser um eminente futebolista. Se há um material esportivo novo, por exemplo, o atleta amador logo o adquire, menos para aumentar seu rendimento do que para recrudescer o desencanto por não estar no lugar daqueles afortunados que jogam tanta bola – na maioria dos casos, até menos – quanto ele. As cores tropicais das chuteiras que calçam os pés famosos são as mesmas cores que estampam as chuteiras que chutam as bolas nessa imensidão de campinhos espalhados por todos os cantos. Os cortes de cabelo, os perfumes, o estilo musical, o linguajar, e até as marias-chuteiras são as mesmas – no caso das mulheres de peladeiros, ainda há para elas a esperança de sair do limbo para o estrelato; não pelo peladeiro com o qual ela se enlaça, e sim pelos contatos que a moça vai estabelecendo a partir desses campeonatos de importância reduzida, até chegar a uma festa ou boate recheada de profissionais, levada pelos próprios amadores que ainda mantêm relações com os seus contemporâneos das categorias de base cuja ventura lhes agraciou.

Logo, o atleta amador é, em linhas gerais, um subproduto daquilo que o futebol contemporâneo se tornou: ele não nutre grande paixão por um clube – há casos em que ele alimenta uma irrefreável raiva dos times que lhe fecharam as portas quando novo, ora por um empresário diabólico, ora por uma contusão -, muito menos vai ao estádio. No mesmo horário em que as grandes agremiações entram em campo, estão ocorrendo centenas de campeonatos por todo o Brasil, onde jogam milhares de homens, correndo atrás da bola, alheios ao mundo que não lhes cedeu o que supostamente mereciam. Por isso, os atletas amadores se identificam mais com o jogo – o jogador, na verdade – do que com os clubes de futebol profissional. E basta uma televisão ligada, à hora de um jogo, numa birosca qualquer próxima a esses campos de pelada para notar que essa indiferença pelo grande circuito do futebol contagia toda a comunidade que possui um campeonato de pelada: todos querem saber mesmo é dos seus gênios locais, dos craques que não foram, dos grandes jogos entre um bairro e outro.

Tudo isso dá à paixão do brasileiro pelo futebol um molho a mais, mas também lhe ceifa o primordial: o amor insubstituível por um clube de futebol. Logo me vem à cabeça, ao chegar a tal conclusão, as palavras ditas pelo vocalista do U2, Bono Vox, sujeito entusiasta do futebol, quando sua banda veio ao Brasil realizar sua primeira grande turnê. Ele disse ter achado o máximo que os brasileiros tenham seus campinhos de futebol nos seus sítios e residências, que jamais presenciara isso na Irlanda ou em qualquer dos muitos países que já visitara. Talvez, ele tivesse perplexidade maior ao constatar que os brasileiros deixam de ir ao estádio para jogar uma pelada, que as peladas às quartas-feiras à noite, na hora nobre do futebol em todo mundo, estão cheias de gente de chuteira Nike e camisas de times europeus, bem na hora em que o time de infância de cada um desses boleiros está em campo, defendo as cores as quais que eles supostamente juram ser fiéis até a morte. E ai de quem disser a esses caras que eles não são torcedores que prestem. Não há ofensa maior ao brasileiro do que questionar sua paixão pelo futebol.

Não que eu me queixe disso tudo. Tendo a acreditar – e a me conformar, também - que essa característica seja exclusividade do brasileiro, o que lhe confere um controverso galardão. Só não caio na falácia repetida pela imprensa e pelos publicitários, principalmente nas vésperas de uma Copa do Mundo. Somos o país dos peladeiros, jamais do Futebol.

Vitor Gouveia

2 comentários:

  1. Eu me enquadro naquele grupo q desfila habilidade e demonstra total aptidão em tratar a pelota

    Edu

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  2. "Somos o país dos peladeiros, jamais do Futebol", nem freud teria feito uma análise tão clínica! Muito Bom!
    bj
    tati

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